quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Uma Fábula Sobre a Fábula

Esta lenda árabe recontada por Malba Tahan revela o maravilhoso poder da fábula. O que as fábulas (e os contos) querem mostrar? A verdade. Mas a verdade não pode aparecer nua, como ela é... se aparece assim, não é aceita. Há que ter uma roupagem própria. Essa roupagem é a fábula, uma forma poética e leve de dizer a verdade. Daí sua grande importância!

Allahur Akbar! Allahur Akbar! (Deus é grande! Deus é grande!)
Quando Deus criou a mulher criou também a fantasia. Um dia a Verdade resolveu visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid.
Envolta em lindas formas num véu claro e transparente, foi ela bater à porta do rico palácio em que vivia o glorioso senhor das terras mulçumanas. Ao ver aquela formosa mulher, quase nua, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou A Verdade! - respondeu ela, com voz firme. - Quero falar ao vosso amo e senhor, o sultão Harun Al-Raschid, o Sheik do Islã!
 O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, apressou-se em levar a nova ao Grão-Vizir:
- Senhor, - disse, inclinando-se humilde, - uma mulher desconhecida, quase nua, quer falar ao nosso soberano, o Sultão Harun Al-Raschid, Príncipe dos Crentes.
- Como se chama?
- Chama-se A Verdade!
- A Verdade! - exclamou o Grão-Vizir, subitamente assaltado de grande espanto. - A Verdade quer penetrar neste palácio! Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se A Verdade aqui entrasse? A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que uma mulher nua, despudorada, não entra aqui!
Voltou o chefe dos guardas com o recado do grão-vizir e disse à Verdade:
- Não podes entrar, minha filha. A tua nudez iria ofender o nosso Califa. Com esses ares impúdicos não poderás ir à presença do Príncipe dos Crentes, o nosso glorioso sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, pelos caminhos de Allah!
Vendo que não conseguiria realizar o seu intento, ficou muito triste A Verdade, e afastou-se lentamente do grande palácio do magnânimo sultão Harun Al-Raschid, cujas portas se lhe fecharam à diáfana formosura!
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também A Obstinação. E A Verdade continuou a alimentar o propósito de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o sultão Harun Al-Raschid...
Cobriu as peregrinas formas de um couro grosseiro como os que usam os pastores e foi novamente bater à porta do suntuoso palácio em que vivia o glorioso senhor das terras mulçumanas.
Ao ver aquela formosa mulher grosseiramente vestida com peles, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou A Acusação! - respondeu ela, em tom severo. - Quero falar ao vosso amo e senhor, o Sultão Harun Al-Raschid, Comendador dos Crentes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu a entender-se como o Grão-Vizir.
- Senhor - disse, inclinando-se humilde, - uma mulher desconhecida, o corpo envolto em grosseiras peles, deseja falar ao nosso soberano, o Sultão Harun Al-Raschid.
 - Como se chama?
 - A Acusação!
 - A Acusação?
- repetiu o grão-vizir, aterrorizado. - A Acusação quer entrar nesse palácio? Não! Nunca! Que seria de mim, que seria de todos nós, se A Acusação aqui entrasse! A perdição, a desgraça nossa! Dize-lhe que não, que não pode entrar! Dize-lhe que uma mulher, sob as vestes grosseiras de um zagal, não pode falar ao Califa, nosso amo e senhor!
Voltou o chefe dos guardas e disse à Verdade:
- Não podes entrar, minha filha. Com essas vestes grosseiras, próprias de um beduíno rude e pobre, não poderás falar ao nosso amo e senhor, o Sultão Harun Al-Raschid. Volta, pois, em paz, pelos caminhos de Allah!
Vendo quem não conseguiria realizar o seu intento, ficou ainda mais triste A Verdade e afastou-se vagarosamente do grande palácio do poderoso Harun Al-Raschid, cuja cúpula cintilava aos últimos clarões do sol poente.
Mas...
Allahur Akbar! Allahur Akbar!
Quando Deus criou a mulher, criou também O Capricho.
E A Verdade entrou-se do vivo desejo de visitar um grande palácio. E havia de ser o próprio palácio em que morava o Sultão Harun Al-Raschid.
Vestiu-se com ríquissimos trajos, cobriu-se com jóias e adornos, envolveu o rosto em um manto diáfano de seda e foi bater à porta do palácio em que vivia o glorioso Senhor dos Árabes.
Ao ver aquela encantadora mulher, linda como a quarta lua do mês de Ramadã, o chefe dos guardas perguntou-lhe:
- Quem és?
- Sou a Fábula
- respondeu ela, em tom meigo e mavioso. - Quero falar ao vosso amo e senhor, o generoso Sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Árabes!
O chefe dos guardas, zeloso da segurança do palácio, correu, radiante, a falar com o Grão-Vizir:
- Senhor, - disse, inclinando-se, humilde - uma linda e encantadora mulher, vestida como uma princesa, solicita audiância de nosso amo e senhor, o Sultão Harun Al-Raschid, Emir dos Crentes.
- Como se chama?
- Chama-se A Fábula!
- A Fábula!
- exclamou o Grão-Vizir, cheio de alegria. - A Fábula quer entrar neste palácio! Allah seja louvado! Que entre! Benvinda seja a encantadora Fábula: Cem formosas escravas irão recebê-la com flores e perfumes! Quero que A Fábula tenha, neste palácio, o acolhimento digno de uma verdadeira rainha!
E abertas de par em par as portas do grande palácio de Bagdá, a formosa peregrina entrou.
E foi assim, sob o aspecto de Fábula, que A Verdade conseguiu aparecer ao poderoso califa de Bagdá, o Sultão Harun Al-Raschid, Vigário de Allah e Senhor do grande império mulçumano!

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